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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Crítica: Kno – Death Is Silent (2010)

 

Kno - Death Is SilentTalvez o disco mais contundente do ano – e não existe melhor palavra para defini-lo –, Death Is Silent, do rapper e produtor musical Kno, envolve seu ouvinte em rimas inteligentes, cadência variada, músicas incidentais (melhor dizendo, músicas dentro de músicas), um tema bem trabalhado ao longo de todas as faixas e ambientações valiosas.

O álbum é grandioso: possui um conceito central, o mais comum e inevitável de todos os assuntos que envolvem o ser humano: a morte. E como a própria morte, o disco alterna entre momentos altos e baixos, entre vozes masculinas e choros femininos, entre bateria eletrônica e piano, entre eu lírico auto-confiante e moribundo decadentista. Uma obra-prima a ser legada às próximas gerações.

Musicalmente falando, nota-se logo no início do álbum que Kno sabe usar recursos extra-musicais, assim como temas sonoros recorrentes em outros estilos musicais. Isso adiciona “inter-sonoridade” (palavra que criei aos moldes de “inter-textualidade”, que é a característica de uma obra escrita dialogar com outras) assim como revela a maturidade do artista, que veio de um trio de Hip-Hop de certo sucesso em Atlanta, chamado CunninLinguistics. Do seu passado no trio, Kno apenas trouxe para este trabalho as participações ocasionais dos companheiros, engrandecendo sua obra ainda mais.

No caso, ouvindo-se a primeira faixa acima, perceba que do nada, através do recurso do fade-in, surge uma melodia psicodélica, característica daquela época chamada de “sons espaciais”. Isso significa usar seus instrumentos musicais com a intenção de levar seu ouvinte às estrelas. Literalmente falando: notas agudas, aproximando-se do desafino, muitas vezes mantidas por muito tempo, além de efeitos de sintetizadores para tornar o som mais metálico. Enfim, Death Is Silent começa assim: espacial, oriundo do completo vazio. Apenas isso de fato serviria para se representar a sensação de morte: da imensidão do cosmos, há apenas o nada. Um narrador é adicionado a essa introdução falando sobre a morte. “Eu tentava te falar, mas você não me ouvia”. Pouco depois, a batida rap entra e Kno começa a recitar seu papel, cantando com a convicção necessária para pontuar verso após verso, os quais definem a morte na melhor forma possível: “A morte é silenciosa / (…) Vil e violenta / (…) A morte é recorrente / (…) A morte é igual para todos / (…) A morte é sem-fim”. Conciso, objetivo, frio. Como somente alguém que já morreu pode atestar.

Ao fundo, o choro de uma mulher percorre mais de um minuto e meio da faixa. Ao fim, o narrador diz “twice upon a time there was a boy who died, lived happily ever after – but that’s another chapter.” Esta introdução explicita o teor conceitual do disco: não apenas trabalhará o tema da morte, mas, sim, a da morte vivenciada pelo ser humano. Death Is Silent, portanto, pretende tornar-se em um tipo de “Elogio à Morte”. Ótimo!

Importante ressaltar que o choro da mulher ao fundo é também um exemplo de fim musical cíclico, ou seja, elementos de uma música que reaparecem ou fundem-se na(s) música(s) seguinte(s). Neste caso, a segunda faixa chama-se “If You Cry”, a qual possui duas estrofes e em ambas o primeiro verso apela para o choro inicial, transportando-o para o sexo masculino: “Tear ducts seem such a useless tool” e “Tear ducts seem such a waste of flesh”. Lembrando que o narrador deixou claro que o disco seria sobre um “garoto”, é importante mencionar a relação que a sociedade obriga a existir entre o choro e o homem. A letra cita presidiários, reis, “homens de aço”, quando a dor toma conta do “templo dentro do ser”. Óbvio que essa dor, maior do que todas, trabalhada ao longo da música é, justamente, a dor da morte. Ao fim da letra, o eu lírico clama pelo companheiro que morreu, assim como pelo avô, ambos citados em outras faixas, mantendo o tom conceitual da obra.

O elemento feminino entra, “de sola”, no álbum a partir da terceira faixa, “Loneliness” – apropriadamente: a solidão de um homem que é curada pela presenta feminina. E é aqui que outra característica aparente nas duas primeiras faixas engrandece e torna-se central nas rimas do músico: as metáforas. Extraídas dos mais variados lugares e mídias, Kno sabe como poucos pontilhar seus versos com metáforas bem colocadas. A música começa com “Damsel in distress”, um dos mais recorrentes temas da cultura humana: a famosa donzela em apuros. Ao contrário do clichê, porém, o artista cria sua personagem às avessas: ela finge, mente, vive sob máscaras perante a família, perante as pessoas a sua volta. O sexo, porém, é seu poder. Como toda donzela, diga-se: o cavaleiro sempre se apaixona por ela, mata dragões por ela, e com este aqui não seria diferente: “And she looked at me /And the power knocked me down to her feet”.

Aliás, toda essa estrofe de relação mais direta entre o protagonista do disco e a donzela é genial: após ajoelhar-se perante o Poder do Sexo, o garoto sente-se como “um plebeu olhando para o Rei” e, acreditando se tratar de pura droga, vê a donzela tornar-se uma Rainha e dizer “You were patiently waiting (…) [now] you’ve married your competition”. A relação sexual, a única que pode de fato libertar a “donzela” do seu carcereiro, é descrita brincando com os termos Reino, tanto o de cunho histórico-feudal quanto o bíblico – melhor analogia não poderia haver.

Outro excelente exemplo de metáfora é a faixa 8. Após tratar do tema sexual de forma tão, digamos, literária, Kno aborda o sexo pago como cemitério. Descreve prostitutas e fama das mesmas, valendo-se para tal de comparações que privilegiam, como os melhores poetas diriam, o objeto e o conceito que o envolve. Hálito é algo sobre o qual muitos já falaram, mas que tal “o hálito fede a Cheetos” – e pior: rimando-o com o verso anterior com a “nota de 1 dólar”. A cadência silábica nesta música, por ser mais lenta, denuncia as milhares de rimas internas e externas compostas pelo músico. Um belo trabalho rítmico, contrastando com a crueza com a qual o eu lírico reflete o mundo das prostitutas e sua relação com o mesmo.

Além da letra, a faixa “Graveyard” também exemplifica o que foi dito acima como “músicas dentro de músicas”. A faixa começa com uma viola ao fundo, arpejos sendo tocados, e um narrador falando sobre cemitério. Esse violão ainda sobressai mesmo depois que a batida eletrônica entra para, depois que o som de uma página sendo virada irrompe, desaparecer no meio da música. Porém, ao fim da música, o violão e o narrador voltam, inclusive com uma curta linha de flauta. Tudo isso para simbolizar o tema trovadoresco: o do músico itinerante que, entre outros motivos musicais, entoava odes a suas musas.

Esta característica musical cíclica e referente a sons passados tem seu clímax na faixa 05, “Rythm of the Rain”. Ao som de chuva, um violão começa a tocar, sendo respondido pouco depois pelo que parece ser um violoncelo. Após alguns segundos, surge o narrador com uma voz que lembra muito o Ian Anderson do Jethro Tull no passado cantando: “Dance to the rythm of the rain / How could I go wrong?” Este é o tema que vai mediar a letra inteira e os três interlocutores que expõem suas opiniões ao longo dela.

Thee Tom Hardy começa seu monólogo questionando a relação entre o protagonista e a mulher da terceira faixa: “What’s a way for you to waste away your days of mistakes?” A falácia do casamento (formal ou não): a falsa ideia de que a união estável traz segurança à vida (“You’re happy with somebody so you wish and hope that it’s fate / But what if it’s fake? Hell of a scam, the whole time”). O segundo a falar, Tunji, é ainda mais direto:I still remember the first time I realized that life wasn’t picture perfect/ My father packing up his things to leave his kids deserted”. Não há salvação, nem mesmo dentro do seio familiar: aquilo que acreditamos rotineiro e seguro pode desabar a qualquer momento, do mesmo jeito que “The rain reflecting off the windows as it hit the surface” Melhor fazer as coisas de forma calma e racional, então?

Kno, o personagem-central do disco, disseca a natureza da sua relação com a mulher através das melhores metáforas do disco. Inicialmente, descreve-se como “caçador de tempestades” enquanto ela é o famigerado avião F-5, com um “controlador sexual” [sex drive] impactante, “cintura de furacão”. Esta relaçao deixa claro que ela serviria como instrumento para que ele atingisse seu objetivo – ou seja, um objeto para seu prazer. Porém, aqui ocorre uma mudança no teor na forma como ele a via na terceira faixa: aquela que foi idealizada enquanto donzela, mostra-se agora como “professora” e “jogadora”. Pior: ela sabe que ele sabe do seu jogo – e transforma-o em seu fantoche. Ainda se valendo de metáforas “aéreas”, ele a chama de “aeromoça” enquanto manda o avião pra turbulência entre nuvens por qualquer motivo que seja. No fundo, brincando com ele, fazendo dele o que quer. Por fim, a confusão some, “nuvens passam” e ele pode dizer exatamente qual o seu problema: “Cus she’s my sunshine but I’m catchin melanoma”. Melanoma é um tipo de câncer de pele e é proveniente da exposição à luz do sol. Logo, não apenas a mulher é o calor e a luz necessária ao seu viver, mas possui ao mesmo tempo o poder de destruí-lo. E ela de fato o faz: matando-o na faixa 9 a tiros.

Portanto, não apenas Kno soube usar das rimas tão caras ao gênero musical em que está inserido, mas através delas e de todo um aparato extra- e trans-musical, conseguiu expor um tema tão impactante e até mesmo comum – se pensarmos em todas as músicas que falam de morte – porém de uma forma original, complexa, cíclica e geradora das mais altas música e poesia.  Valendo-se de metáforas e citações da arte e cultura tanto do passado quanto do presente, o rapper acabou criando um disco, em suma, obrigatório e um dos melhores do ano.

Nota: 4,5 / 5

Tracklist:

1. Death Is Silent 02:48 aprovado

2. If You Cry f. Natti 03:26

3. Loneliness f. Nemo Achida & Deacon The Villain 03:20

4. La Petite Mort (Come Die With Me)03:31

5. Rhythm Of The Rain f. Thee Tom Hardy & Tunji 04:33 aprovado

6. Spread Your Wings f. Deacon The Villain 03:13 aprovado

7. Smile (They Brought Your Coffin In)01:52

8. Graveyard f. Sheisty Khrist 02:52

9. I Wish I Was Dead f. Tonedeff 04:54

10. They Told Me f. Deacon The Villain03:59

11. When I Was Young f. Natti & Substantial03:32

12. Not At The End f. Tunji 03:16 aprovado

13. The New Day (Death Has No Meaning)03:07

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