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Era um dos filmes mais aguardados de 2010, para mim, desde que soube de sua existência, em Janeiro deste ano. Ao assisti-lo, além de fruir da sua beleza estética, empolguei-me com uma de suas características mais marcantes: a trilha sonora. Que fique claro desde agora: existem filmes em que a história e os diálogos são narrados através de músicas (ou seja, pertencem ao gênero “musical”), existem filmes em que a música não existe ou não é o foco principal e existem filmes em que a história é pontuada por músicas muito bem selecionadas. Kick-Ass cai neste último grupo.
Para mim, a música funciona como catalisador: seja pela melodia, pela linha de voz, pela letra, de alguma forma, a música se conecta com o espectador, criando um elo de forma tal que simplesmente ouvi-la é suficiente para que a pessoa relembre da cena em que tocou. Um grande ícone neste quesito é Quentim Tarantino: eu consigo lembrar de Kill Bill Vol. 1 apenas pela trilha sonora. Outro mestre no uso da música para ambientalizar e pontuar a história é Martin Scorcese.
Kick-Ass refaz os passos dos dois cineastas citados. E com genialidade. Buscando artistas do psicolédico, da eletrônica, do instrumental, do hip hop, do rock, alguns desconhecidos ou esquecidos, o filme ganhou uma aura empolgante e uma carga dramática únicas. Por exemplo, um dos compositores lembrados pelos produtores do filme é ninguém mais, ninguém menos do que Ennio Morricone. Um dos seus temas western, com direito a assobio e tudo, funciona como co-adjuvante em um dos melhores trechos do filme. Clique aqui e veja a seqüência com o tema ao fundo.
Aliás, se reparar bem, a faixa inicia com um diálogo extraído do filme. Recurso não muito popular hoje em dia (cito, novamente, Kill Bill), reforça o vínculo entre a película e o som. Além do quê, embora não sejam da mesma cena, as frases têm claramente a ver com a música e (especialmente) com o trecho do filme em que a música de Ennio toca.
Ademais, toda a trilha sonora possui relação com o filme. Como disse anteriormente, os produtores tiveram um trabalho duro para selecionar estas faixas, mas fizeram-no tão bem que todas possuem ligação temática com a película. Por exemplo, esta citação: “This town ain't big enough for the both of us / And it ain't me who's gonna leave”. Uma primeira leitura denota uma situação de conflito entre duas pessoas, tema tratado ad eternum pelo cinema faroeste: aquele momento em que um bad-ass olha para o outro e diz “Escolha as armas”. No caso, clique aqui e veja que não é muito diferente do que ocorre no filme. Claro que existe uma… digamos… “repaginada” na forma como o filme trata o tema, mas continua sendo uma situação de conflito.
A música, cujo título é This Town Ain’t Big Enough For Both of Us, foi um single de estrondoso sucesso da banda americana Sparks, lançado em 1974. O som psicodélico da mesma atenua um pouco da tensão descrita pelo eu lírico, mesmo embora, na verdade, a letra é tão bem escrita que ela confunde, entre sarcamos e ironias, sobre quem, afinal, está para se degladiar. Alusões a animais mamíferos e um pronome feminino podem mostrar que ela gira em torno de atração sexual, mas, vindo de uma banda psicodélica, será isso mesmo? :)
Outro exemplo desse diálogo entre filme e trilha sonora, sem querer falar demais (porém já falando!), é a faixa 10 (ou faixas 14 e 15, se considerar os trechos extraídos do filme como faixas à parte): We’re All In Love, de The New York Dolls. O final da segunda estrofe, conectado com o refrão, explicita esta relação: “When love is strong, life intensifies because/We're all in love!”, a qual dialoga intimamente com a própria relação apaixonada entre os dois adolescentes. Este diálogo entre ambas as mídias confere algumas características à personagem principal. Primeiro, um aumento na sua auto-estima, a qual tanto a música como a cena de sexo-na-rua deixam claro (no refrão, em que lê-se “We’re all in love / We don’t care / (…) What could they do to us?”). É digno de nota que esta auto-estima é deveras necessária quando se possui como emprego (ou hobby) o combate ao crime. Segundo, esta paixão possui, como sempre, uma característica inconsciente: tomamos coragem para fazer coisas que não fazemos normalmente (e muitas vezes depois, ao lembrarmos delas, julgamo-as ridículas). Terceiro, como já seria óbvio, o relacionamento dos dois é o gancho da catarse que o público vive na cena em que Kick-Ass é torturado na frente da menina.
Por fim, não poderia deixar de mencionar a música que, na minha opinião, é a principal do disco. Lembro que, ao assistir ao filme no cinema com um grupo de amigos, um deles, que se apaixonou pela película a ponto de vê-la mais de uma vez, não me deixou sair nos créditos sem ouvi-la.
I could change the world
I could make it better
Kick it up and down
Take a chance on me- Mika vs. RedOne, “Kick-Ass”
Compor a música-tema de um filme é um tour de force. Não apenas captar toda a atmosfera de um filme, seja ela qual for, mas juntar isso a uma letra que precisa fazer sentido dentro de toda esta salada. E Mika surpreende com um dos melhores hits que ouvi recentemente.
Lutar contra o crime é um fato heróico, certo? E apenas o trágico, dizem os filósofos desde Aristóteles, conseguem dar conta de demonstrar toda a força de personagens fadados a um destino que toda a plateia já sabe ser difícil e intransferível. Provo isso quando tanto o Super-homem morreu quanto o Batman teve sua espinha quebrada (e a DC Comics teve um trabalho igualmente hercúleo de tentar criar personagens à altura e falhou miseravelmente). No caso, Batman é citado no filme e não existe como pensar em um heroi sem poderes sem pensar no Morcegão. Acontece que Kick-Ass não é bilionário, e sequer passou anos treinando artes marciais.
Kick-Ass é um personagem comum. Como ele mesmo diz, “no powers bring no responsibility". E ele comprova a mentira disso: todos os nossos atos, por mais ou menos heroicos que sejam, causam consequências, imprevisíveis e inevitáveis. Isso me encanta no filme: ele não é apenas um pastiche de tudo quanto é filme de super-herói no mercado. Ele é uma metáfora da vida comum. Embora o protagonista resolva tomar uma atitude em prol da humanidade, ela nada se distancia das nossas decisões cotidianas. A diferença é que ele, assim como sua comparsa Hit-Girl, possui força de espírito, apesar da sua idade, para se reerguer: “We are young / We are strong”.
Fica a dica para nós: como dizia o filósofo brasileiro Luiz Pondé, a nossa vida é repleta de decisões trágicas. O que importa não é o que invariavelmente vai acontecer no final, mas como que você decide enfrentar isso.
Nota: 5 / 5
"Kick-Ass" Soundtrack Tracklisting
1. "I'm Kick-Ass"
2. Stand Up - The Prodigy
3. Kick Ass - Mika Vs Redone
4. "I Never Said Batman"
5. Can't Go Back - Primal Scream
6. There's A Pot Brewin' - The Little Ones
7. "Bring It On!"
8. Omen - The Prodigy
9. "Butterfly Knife"
10. Make Me Wanna Die - The Pretty Reckless
11. "Mayor's Office"
12. Banana Splits - The Dickies
13. Starry Eyed - Ellie Goulding
14. This Town Ain't Big Enough For Both Of Us – Sparks
15. "Who Would Win In A Fight...?"
16. We're All In Love - New York Dolls
17. Bongo Song - Zongamin
18. "I Never Play"
19. Per Qualche Dollaro In Piu (For A Few Dollars More) - Ennio Morricone
20. "No Power, No Responsibility"
21. Bad Reputation - The Hit Girls
22. An American Trilogy - Elvis Presley
23. "Show's Over..."
P.S.: Clique aqui e vá a um post no forum Taringa!, em que um usuário disponibilizou uma versão extendida da trilha sonora deste filme, contando com *todas* as músicas que tocam ao longo do filme!